Por Anselmo Dias:
O Abono de família a crianças e jovens
- um direito a abater
O itinerário da demagogia envolve tantos ou mais caminhos
do que aqueles que vão dar a Roma.
A demagogia,
expressão antiga proveniente da Grécia Clássica, não é mais do que, utilizando
um bom português, a arte de iludir o povo com toda a pinta.
A demagogia é, pois, fazer crer a uma parte significativa da população aquilo
que ela gostaria de ter, pelo que a promessa do demagogo é um bem rentável, ou
seja, obtém um apoio certo em troca de nada.
Os exemplos do nefasto efeito da demagogia são inúmeros e variados.
Vejamos, a título de exemplo, o caso do abono de família.
Comecemos pelo ano de 1997.
1997 marca o início do desmantelamento das prestações
sociais atribuídas às crianças e jovens.
Nesse ano o governo de António Guterres, tendo como
ministro do Trabalho e da Segurança Social o dr. Ferro Rodrigues, acabou com o
subsídio de aleitação e com o subsídio de nascimento, cujos valores foram
integrados no «subsídio familiar a crianças e jovens», nova
designação do chamado «abono de família», formulação que iremos
continuar a usar neste texto.
Extintos tais subsídios, o governo de António
Guterres, embora declarando a universalidade do «abono de família»,
dividiu-o em três escalões em função do rendimento familiar indexado ao salário
mínimo nacional.
O desaparecimento do subsídio de aleitação e do
subsídio de nascimento acrescido da divisão do «abono de família»
em três escalões constituem o gérmen da destruição de um direito levado a cabo
nos governos seguintes de Durão Barroso e de José Sócrates.
Não obstante as malfeitorias de António Guterres a
verdade é que em nome da demagogia o seu governo fez inscrever no Decreto-Lei
133-B/97 de 30 de Maio esta preciosidade:
«O subsídio familiar a crianças e jovens é uma
prestação mensal que visa compensar os encargos familiares respeitantes ao
sustento e educação dos descendentes do beneficiário».
Quando se diz que o «abono de família»
se destina a suportar despesas com alimentação e educação, conferindo, naquela
altura, a uma criança com mais de 12 meses inserida num agregado familiar do
3.º escalão, 2770$00, ou seja cerca de 14 euros, está tudo dito quanto à arte
de iludir o povo com toda a pinta.
Passados quatro anos, em nome do propalado conceito de
«discriminação positiva», ou seja, diferenciar o usufruto em vez de diferenciar
o pagamento de impostos, o mesmo governo de António Guterres passou de três
para quatro os escalões.
As malfeitorias do governo de Durão Barroso
Entretanto o mano siamês do PS, o PSD, chega ao poder.
Em Agosto de 2003, subscrito, entre outros, por Durão
Barroso e Bagão Félix é publicado o Decreto-Lei 176/2003 de 2 de Agosto, em
cujo preâmbulo é referido que «Nesta conformidade e porque a família
constitui um elemento fundamental da sociedade, importa fomentar, na definição
das políticas sociais, a introdução de medidas que garantam uma progressiva
melhoria das condições de vida dos seus membros, designadamente através da
concessão de prestações sociais mais justas e eficazes».
Para alicerçar tão ínclito propósito o governo de
Durão Barroso introduziu seis escalões no abono de família indexados aos
rendimentos familiares, tendo como base de cálculo o salário mínimo nacional.
Passados cerca de três meses e meio, em 20/11/2003, a
manha da coligação PSD/CDS-PP é primorosamente evidenciada ao acabar com o 6.º
escalão sem que tivesse havido formalmente um diploma a expressá-lo com
clareza.
Com efeito, aquilo que havia sido imposto num
Decreto-Lei é manhosamente arredado por uma Portaria assinada por Maria Manuela
Dias Ferreira Leite e por António José de Castro Bagão Félix.
Com esta decisão é colocado um fim à universalidade do
«abono de família» cujos beneficiários atingidos são todos
aqueles com rendimentos de referência superiores a cinco vezes o salário mínimo
nacional.
É neste contexto que uma criança com mais de 12 meses
inserida numa família do 5.º escalão recebe um subsídio mensal de 10 euros,
para que, com tal valor, possa comer e aceder aos serviços de Saúde.
Quando falamos em demagogia, também é disto que
falamos.
Quando falamos em demagogos, também é de Durão Barroso
e de Bagão Félix que falamos.
As malfeitorias do governo de José Sócrates
O governo de José Sócrates dizia em Setembro de 2007,
no Decreto-Lei 308-A/2007, que: «A família constitui, no actual contexto
sócio-económico, um espaço privilegiado de realização pessoal e de esforço da
solidariedade intergeracional, sendo dever do Estado a cooperação, apoio e
incentivo ao papel insubstituível que a mesma desempenha na comunidade».
No ano seguinte, em Maio de 2008, no Decreto-Lei
87/2008, o já referido José Sócrates repetia, ponto por ponto, o texto atrás
referido.
No mesmo ano de 2008, através da Portaria 425/2208 de
16 de Junho, o governo do PS declarava: «A melhoria das políticas sociais
direccionadas às famílias mais numerosas e carecidas de apoio sócio-económico
continua a constituir uma das preocupações dominantes do Programa do XVII
Governo Constitucional».
Em 14 de Maio de 2009 os mesmos enfatizavam o
seguinte: «As actuais tendências demográficas, caracterizadas por um
envelhecimento progressivo da população, a par de uma conjuntura económica
desfavorável a nível internacional, com as consequentes repercussões na
economia interna, têm determinado a adopção de um conjunto de medidas, no
sentido de, por um lado, apoiar a natalidade e, por outro lado, adoptar medidas
de apoio financeiro às famílias»
Passado um ano, em Outubro de 2010, toda a lengalenga
atrás referida é deitada ao caixote do lixo porque José Sócrates entendeu que:
«É essencial dar sinais claros e inequívocos do
esforço de consolidação das finanças públicas que Portugal está a efectuar,
reforçando a credibilidade financeira junto dos mercados internacionais. Este
sinal é essencial para melhoria das condições de financiamento da economia, das
empresas e das pessoas».
Em nome dos mercados internacionais o governo extingue
o 4.º e o 5.º escalões do abono de família, ao mesmo tempo que regride em tudo
o que diz respeito a majorações no abono de família pré-natal, nas majorações
correspondentes aos 2.º e 3.º filhos, bem como às majorações atribuídas às
famílias monoparentais.
De uma penada foram arredadas de tais direitos cerca
de 700 000 crianças e jovens.
O dr. Medina Carreira e respectiva confraria devem ter
ficado com as mãos vermelhas de tanto terem aplaudido tal medida.
Passos Coelho e a chamada «sociedade civil»
O desmantelamento do abono de família – iniciado por
António Guterres, continuado por Durão Barroso e acelerado por José Sócrates –
vai ter seguramente com Passos Coelho uma nova etapa.
A etapa de que o abono de família não é um direito de
cidadania atribuído universalmente às crianças e jovens, mas antes, no plano
social, algo a ser concedido restritivamente, a uns poucos, no âmbito da
caridade e do assistencialismo.
O Estado, dizem «eles», não tem vocação
para a atribuição dessa minudência designada por «abono de família».
A «sociedade civil» é, segundo os
interesses dominantes que dominam o actual Governo, a entidade vocacionada para
resolver esse e outros problemas de natureza social.
A sociedade civil – leia-se: a maior parte das IPSS,
Misericórdias, Centros Paroquiais, Cáritas e organizações afins dominadas pela
Igreja – está já a esfregar as mãos de contentamento e a abrir os cordões à
bolsa, não para a saída de dinheiro mas para a sua entrada, com o argumento de
que é capaz de, comparativamente ao Estado, gerir melhor os dinheiros dos
contribuintes.
É neste contexto, apoiando as medidas do Governo, que
o Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom José Policarpo, vem publicamente a terreiro
dar a sua concordância ao imposto sobre o subsídio de Natal com o falso
argumento de que o mesmo é igual para todos, quando ele sabe perfeitamente que
nem todos os rendimentos estão abrangidos por aquele roubo imposto à
generalidade dos trabalhadores por conta de outrem.
Por outro lado, o Cardeal sabe perfeitamente que
Portugal é um dos países da Europa com as maiores diferenças sociais, tendo
como referência o coeficiente entre os rendimentos dos 20% mais pobres e dos
20% da população mais rica. Sobre isto é ensurdecedor o silêncio do Bispo de
Lisboa.
A par da Igreja, o sistema financeiro está também a
esfregar as mãos de contentamento com o anúncio do plafonamento, ou seja,
remeter para banca e para as companhias de seguros uma parte dos descontos que
cabe ao sistema público de Segurança Social.
Com esta medida, caso o povo português não a impeça,
Passos Coelho resolve três questões:
– E estrangula financeiramente a Segurança Social e, assim, arranja o pretexto para
fomentar, até aos limites máximos impostos pelo neoliberalismo, a caridade e o
assistencialismo;
garante aos seus mandantes, ou seja, ao BCP, ao BES,
ao BPI e ao restante sistema predador da nossa economia, recursos baratos,
obtidos internamente, evitando o recurso ao crédito externo, factores que
potenciam não só a maximização dos lucros como a acentuação do poder do sistema
financeiro;
possibilita ao senhor Belmiro de Azevedo, ao senhor Alexandre
Soares dos Santos, aos accionistas da EDP, da PT, da GALP
e de outras grandes empresas deixarem de pagar à Segurança Social 23,75% sobre
a componente salarial acima do valor atribuído ao plafonamento, ou seja, tais
empresas vão ver crescer os seus lucros por via da diminuição dos custos do
trabalho.
Ora acontece que vários destes grandes empresários
estiveram, com mediático destaque, na recente campanha eleitoral ao lado do
PSD, embora não saibamos se os mesmos tenham participado nalguns dos almoços da
referida campanha, incluindo os grátis. Sobretudo nestes.
A luta pela universalidade do abono de família
está na ordem do dia
Como atrás foi referido o abono de família foi
primeiramente afectado no que diz respeito ao princípio da universalidade e,
posteriormente, violentamente restringido.
Os governos que limitaram e limitam o direito de
cidadania das crianças e jovens em nome do défice orçamental são os mesmos
governos que fazem vista grossa à corrupção, e que não só não beliscam os
interesses dos banqueiros como não ousam tomar medidas na taxação das grandes
fortunas, por forma a uma mais equilibrada repartição do rendimento disponível
das famílias.
É preciso, pois, repor o princípio da universalidade,
abrangendo todas as crianças, quer sejam oriundas de famílias ricas, quer sejam
oriundas de famílias pobres, cujos encargos devem ser assegurados no âmbito da
fiscalidade e não no âmbito do usufruto dos direitos, ou seja, a chamada
discriminação positiva deve ser efectuada nos impostos e não no âmbito do
subsídio, entendimento que não é aceite pela direita e pela generalidade dos
comentadores, designadamente pelo professor Marcelo.
Nesse contexto é importante salientar que o PCP, no
passado dia 8 de Julho, apresentou na Assembleia da República um Projecto de
Lei cujo conteúdo revoga todas as malfeitorias levadas a cabo pelos governos do
PS e PSD, repondo a estrutura inicial que assegurava a todas as crianças o
abono de família e colocando este subsídio no plano dos direitos e da
universalidade, como acontece com a escola pública e com o Serviço Nacional de
Saúde onde todos devem ser tratados de forma igual, independentemente da sua
origem.